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CRIME DE HOMICÍDIO: VIOLAÇÃO DA IGUALDADE, COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO E AS CONSEQUÊNCIAS QUANTO À APLICAÇÃO DO CÓDIGO PENAL MILITAR E DO CÓDIGO PENAL COMUM.

 Nelson Luiz Camilo de Oliveira

O crime de homicídio quando cometido por militares geram celeumas e curiosidades que por vezes deixam os aplicadores do direito e os doutrinadores em impasses no que concerne à competência da justiça militar e da justiça comum, visando principalmente as consequências jurídicas que possam advir da aplicação do Código Penal Militar (CPM) ou do Código Penal Comum (CP).

O CPM prevê em seu Art. 205 o crime de homicídio simples doloso: “matar alguém”, pena de seis a vinte anos de reclusão. Já a sua figura qualificada, está no § 2º do mesmo artigo, como podemos verificar:  

Homicídio qualificado

§ 2° Se o homicídio é cometido:

I – por motivo fútil;

II – mediante paga ou promessa de recompensa, por cupidez, para excitar ou saciar desejos sexuais, ou por outro motivo torpe;

III – com emprego de veneno, asfixia, tortura, fogo, explosivo, ou qualquer outro meio dissimulado ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;

IV – à traição, de emboscada, com surpresa ou mediante outro recurso insidioso, que dificultou ou tornou impossível a defesa da vítima;

V – para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime;

VI – prevalecendo-se o agente da situação de serviço:

Pena – reclusão, de doze a trinta anos.

Se observarmos as penas tanto do homicídio na forma simples como na sua forma qualificada, verificaremos que são as mesmas em ambos os estatutos repressores (CP e CPM), deixando a leviana impressão de que a condenação, com base num ou noutro, trariam as mesmas consequências jurídicas para o réu, caso um policial militar agindo em razão da função, a título de exemplo, cometesse tal crime contra um civil.

Prefacialmente, cabe lembra que o crime doloso contra a vida de civil praticado por um policial militar será crime militar, entretanto, de competência do Tribunal do Júri. O Código Penal Militar (CPM), em consonância com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – CRFB/88, previu em seu Art. 9, inciso II, alínea “c”, que o militar em serviço ou atuando em razão da função, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, comete crime militar se praticado conduta tipificada no CPM e/ou prevista na legislação penal contra militar da reserva, ou reformado, ou civil. A CRFB/88, por sua vez, em seu Art. 5º, inciso XXXVIII, reconhece a competência do Tribunal do Júri para processar e julgar os crimes dolosos contra vida, não especificando se o bem jurídico tutelado (vida) deve pertencer ou não a um civil.

A lei 13.491/2017, trouxe uma nova roupagem ao Art. 9º do CPM, dando tratamento diferenciado entre os militares estaduais e militares das forças armadas. Vejamos os §§ 1º e 2º do referido artigo (grifo nosso): § 1o Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri.    (Redação dada pela Lei nº 13.491, de 2017).

§ 2o Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União, se praticados no contexto: (Incluído pela Lei nº 13.491, de 2017)

I – do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa; (Incluído pela Lei nº 13.491, de 2017)

II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou  (Incluído pela Lei nº 13.491, de 2017)

III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal e na forma dos seguintes diplomas legais: (Incluído pela Lei nº 13.491, de 2017)

a) Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986 – Código Brasileiro de Aeronáutica;  (Incluída pela Lei nº 13.491, de 2017)

b) Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999;     (Incluída pela Lei nº 13.491, de 2017)

c) Decreto-Lei no 1.002, de 21 de outubro de 1969 – Código de Processo Penal Militar; e    (Incluída pela Lei nº 13.491, de 2017)

d) Lei no 4.737, de 15 de julho de 1965 – Código Eleitoral.      (Incluída pela Lei nº 13.491, de 2017)

Como se percebe, os militares dos estados serão submetidos ao Tribunal do Júri caso cometam crimes dolosos contra a vida de civil. Já o militar das forças armadas são processados e julgados pela Justiça Militar da União se assim procederem desde que estejam em operação de garantia da lei e da ordem ou também em suas atribuições subsidiárias, tais como ações preventivas e repressivas em área de fronteira ou ainda em patrulhamento atuando em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo . 

Tais atividades em nada se diferenciam das atribuições das policiais militares que, por vezes, executam o patrulhamento até mesmo em conjunto com os militares do Exército Brasileiro, o que afasta a possibilidade de tratamento diferenciado em relação à competência proposta pelo novel legal, pois as implicações jurídicas, a depender da interpretação que se faça, poderão ser deveras maléficas no caso de aplicação do Código Penal Comum ao policial militar submetido ao júri popular.

Imaginemos que um policial militar, em patrulhamento, utiliza-se da força letal, pois com seu fuzil, atinge dolosamente um civil. Sem adentramos nas hipóteses de excludentes da ilicitude e de imediato aplicarmos o Código Penal Comum, teríamos, no mínimo, um crime de homicídio qualificado pelo uso de arma de fogo de uso restrito ou proibido, conforme previsão do Art. 121, § 2º, inciso VIII, com a qualificadora inserta no Código Penal Comum pela lei 13.964/2019, denominada “lei anticrime”, que inclusive modificou o Art. 75 do CP, alterando o  tempo limite de cumprimento das penas privativas de liberdade de 30 (trinta) para  40 (quarenta) anos. 

Ademais, se houvesse uma condenação, o réu policial sofreria todos os consectários da lei de Crimes Hediondos – lei 8.072/90, pois o homicídio qualificado previsto no CP é tangenciado pela hediondez, conforme previsão do Art. 1º, inciso I, da antedita legislação. Neste contexto, surgiria uma série de implicações jurídicas adversas ao condenado: nesse crime não caberia fiança, graça, anistia ou indulto; a progressão de regime só se daria após cumprimento de, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) da pena, sendo vedado ainda o benefício do livramento condicional .

Diferentemente seria, se um militar do Exército Brasileiro, em condições iguais, patrulhando nas ruas do Rio de Janeiro, em operação de garantia da lei e da ordem, atingisse dolosamente com seu fuzil um civil e este viesse a óbito. Descartando, inicialmente, a excludente da legítima defesa, e como há previsão no Art. 9º, § 2º, inciso III do CPM de que a competência se dirigiria para a Justiça Militar da União e não para o Tribunal do Júri, incidiria o Art. 209 do CPM. E mesmo que ensejasse a qualificadora prevista no § 2º, inciso VI do mesmo artigo: “prevalecendo-se o agente da situação de serviço”, tal delito não seria considerado hediondo por falta de previsão expressa na lei esparsa, pois devido ao critério legal adotado para se definir o que é crime hediondo ou equiparado, não podemos ampliar o rol dos crimes por conta de ser taxativo (numerus clausus) e não exemplificativo. 

Tal critério é solidificado na doutrina brasileira, não concedendo ao julgador margem discricionária para analisar o caso em concreto e tipificar delitos como hediondos a depender da repugnância do ato praticado. Vejamos, a incisiva lição de (LIMA, 2017, pág. 197) a respeito do tema:

O critério adotado pela legislação brasileira para rotular determinada conduta como hedionda é o sistema legal. De modo a saber se um infração penal é (ou não) hedionda incumbe ao operador tão somente ficar atento ao teor do art. 1º da Lei nº 8.072/90: se o delito constar no rol taxativo de crimes ali enumerados, a infração será hedionda, sujeitando-se a todos os gravames inerentes a tais infrações penais, independentemente da aferição judicial de sua gravidade concreta.

Dito isto, ressachando a hediondez do delito praticado pelo militar das forças armadas, ainda que em condições semelhantes às praticadas pelo policial militar, resta nítido que não sofreria os gravames da lei 8.072/90, bem como permaneceria preso no máximo até 30 anos , o que de per si, denota vultosa injustiça, ferindo, ao nosso juízo, o princípio da igualdade, porquanto ambos são militares, submetidos ao mesmo Código Penal Repressor e, no caso exemplificado, executando patrulhamento que é uma atividade subsidiária do Exército Brasileiro, entretanto, função primaz das policias militares brasileiras.

Por questão de isonomia, poderíamos aventar a submissão, tanto dos militares dos estados como dos militares das forças armadas, ao julgamento no Tribunal do Júri, nos casos de homicídio doloso praticados contra a vida de civil, mas utilizando os ditames do Código Repressor Castrense. Para tanto, seria necessário declarar a inconstitucionalidade da norma insculpida na lei 13.491/2017, que previu a competência da justiça militar da União para julgar esses crimes quando o sujeito ativo do delito for militar das forças armadas, partindo da premissa de que a CRFB/88 prevê, placidamente e sem ressalvas, que compete ao Tribunal do Júri o julgamento de tais crimes cometidos em quaisquer circunstancias. 

Longe de suscitar discussões ideológicas, cabe acrescentar que o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5901, no Supremo Tribunal Federal (STF), para declarar a inconstitucionalidade do Art. 9º, §2º do CPM, alegando que tal dispositivo deixa de preservar a autoridade do Tribunal do Júri, fere o princípio da igualdade perante a lei (privilegia uma categoria ou segmento social em detrimento da coletividade) e relativiza o devido processo legal . O parecer da Procuradoria Geral da República – PGR –  dentro da ADI citada demonstra inequivocamente que, além de patente inconstitucionalidade formal, o dispositivo trazido à baila pela novel lei fere materialmente a igualdade entre militares estaduais e federais, além de ir de encontro às regras de direito internacional que impõem com a devida precisão o julgamento das causas por órgãos imparciais, independentes, principalmente quando se tratar de uma garantia individual do cidadão contra possíveis arbítrios estatais. Nesse sentido, é cristalino o que aduz o parecer da PGR, protocolada na ação alhures […] Paralelamente, tramitam na esfera estadual ordinária os processos destinados a apurar as mortes provocadas por integrantes das forças de segurança estaduais, não alcançados pela alteração legislativa. A partir dela, agentes do Estado em cumprimento de idêntica função – segurança pública, sem nenhuma vinculação com a função tipicamente militar – passaram a receber tratamento distinto, sem justificativa legítima, pela só condição de integrarem instituições de esferas diversas. É manifestamente ofensivo ao princípio da igualdade e ao princípio republicano garantir a especialidade de foro nessa situação, em que ausente motivação constitucional ou de qualquer outra ordem para tanto. Forte impacto tem a previsão inconstitucional impugnada, de especialidade de foro, também sobre o compromisso firmado pelo Estado brasileiro perante a comunidade internacional, para quem a independência dos órgãos de investigação é fator fundamental para evitar a impunidade e para assegurar o devido processo legal a todos os envolvidos. A partir desse entendimento, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), amparada pelas prescrições da Declaração Universal de Direitos Humanos, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos que garantem a todas as pessoas julgamento por tribunais competentes, independentes e imparciais, tem estabelecido severos limites à jurisdição penal militar, “que há de ter um alcance restritivo e excepcional, e estar direcionada à proteção de interesses jurídicos especiais, vinculados às funções próprias das forças militares (grifo nosso)

Noutra senda, no ano de 2016, o Superior Tribunal Militar – STM – suscitou a tese de que a Justiça Militar da União seria competente para processar e julgar crime doloso contra vida de civil praticado por militar da forças armadas. O caso em apreço à época, era de um fuzileiro naval da Marinha do Brasil, em operação de pacificação no Complexo da Maré, na qual matou um civil, após confronto com criminosos em atividade de patrulhamento (ASSIS, 2017). 

O STM, após se debruçar sobre o caso, acolheu o voto do Ministro relator, José Coêlho Ferreira, decidindo pela competência da Justiça Militar da União na apreciação dos fatos, mesmo diante da previsão da lei 9.299/96 que impunha, no caso em concreto, que a competência seria da justiça comum, afastando o escabinato militar. A argumentação se sustentava na tese de que, inobstante a previsão legal, a lei se originara por conta de números alarmantes de homicídios praticados contra civis por policiais militares na década de 90, cujos fatos são totalmente alheios ao contexto vivenciado por militares das forças armadas (ASSIS, 2017). 

O Ministro José Barroso Filho, sustentou a possibilidade de se ter um júri popular dentro da Justiça Militar da União, tomando por base as regras do Código de Processo Penal (CPP) aplicando o rito do júri – Artigos 406 a 497 –, c/c o Art. 3º do Código de Processo Penal Militar (CPPM), que permite, em casos omissos, a aplicação subsidiária do códex adjetivo comum. Desta forma, estaríamos em consonância tanto com o Art. 5º, inciso XXXVIII como também com Art. 124, ambos da CRFB/88 (ASSIS, 2017).

O que fora proposto em 2016 no voto do Ministro José Barroso Filho também não resolveria o problema, porquanto estaríamos, ainda assim, diante de flagrante violação ao princípio da igualdade, ensejando tratamento distinto aos militares das forças armadas, olvidando injustamente os policiais militares estaduais, cujo o mister principal é a atividade de patrulhamento. Numa análise inicial perfunctória, resolveríamos esse tratamento não isonômico, se o júri fosse trazido para as justiças militares da União e as Estaduais, seguindo o rito do CPP, como apontou o ministro do STM. 

Outro ponto a ser avaliado, seria uma reforma legislativa que inserisse tal rito no CPPM e assim teríamos um júri que se valeria apenas da legislação militar para julgamentos dos processos quando ocorresse o famigerado e complexo crime doloso contra a vida de civil, com a nítida possibilidade de aplicar o Art. 205 do CPM, afastando a hediondez do delito para ambos os casos – tanto para militares das forças armadas quanto para militares dos estados.

Portanto, convém adotar medida legiferante no intuito de sanar a violação ao princípio da igualdade, tratando de maneira equânime os militares de ambos entes federativos, ou aguardar que o STF se manifeste no julgamento da ADI 5901, dando efeito erga omnes a decisão para que prossigamos com uma definição jurisdicional compatível com o Bloco de Constitucionalidade, obedecendo aos princípios, direitos e garantias, bem como às regras de Direitos Humanos chanceladas pelo Brasil.

MAJOR QOC PM NELSON LUIZ CAMILO DE OLIVEIRA. 

Policial Militar no Estado de Roraima. Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Brasileira de Direito e Pós-Graduando em Direito Militar: Penal, Processual e Disciplinar no ETNA Instituto Educacional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, Jorge César de. Comentários ao Código Penal Militar: comentários, doutrina, jurisprudência dos tribunais militares e tribunais superiores e jurisprudência em tempo de guerra. 9ª edição. Curitiba: Juruá, 2017.
 
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> acesso em 16. jul. 2021.
 
, Decreto-lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969, código penal militar. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del1001.htm> acesso em 16. jul. 2021.
, Decreto-lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969, código de processo penal militar. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del1002.htm> acesso em 16. jul. 2021.
 
, Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, código de processo penal. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm> acesso em 16. jul. 2021.
 
, Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, código penal. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm> acesso em 16. jul. 2021.
 
, lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, crimes hediondos. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8072.htm> acesso em 16. jul. 2021.
 
 
, lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, lei de execuções penais. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7210.htm> acesso em 16. jul. 2021.
 
LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Especial Comentada: volume único. 5ª edição revisada. e ampliada. Salvador: editora Juspodium, 2017.
 
 
 
 

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