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O ERRO DE DIREITO (ART. 35 DO CPM) SERIA UMA INVENÇÃO BRASILEIRA?


No ano passado, o Código Penal Militar fez cinquenta anos de vigência (tendo sido promulgado em 21 Out 69, e entrado em vigor em 1º Jan 70). Acontece que, mesmo após mais de cinquenta anos, há vários institutos que causam debates na doutrina.

Este artigo visa a trazer questionamentos sobre o instituto do erro no CPM que, em 1969/70, foi motivo de inovação; mas que, com a reforma da parte geral do CP comum em 1984, acabou se tornando díspar, tornando causa de debates.

Antes de adentrar nesses específicos institutos, tanto do CPM quanto do CP comum, pertinente resgatar a matriz teórica que foram escritos tanto CPM quanto a parte geral do CP comum em 1984.

Numa humilde síntese da doutrina de Coimbra Neves e Streifinger (2012, p. 226-603)  e Galvão (2016. p. 26-30) , tem-se que a teoria do crime evoluiu a partir dos Iluministas, com o advento da ciência e da ideia de dividir as áreas do conhecimento para, por partes, conseguir aprofundar sobremaneira. Com o crime não foi diferente, dividindo-o em fato típico, antijurídico e culpável. 

Os causalistas (movimento teórico responsável por essa divisão) entendiam, no fato típico (composto por conduta, resultado [naturalístico ou jurídico], nexo causal e tipicidade), que a conduta humana era um movimento corporal que modificava a realidade exterior. Nota-se um apreço maior à ontologia, à relação de causa e efeito e ao empirismo (características do método científico). O dolo e a culpa eram analisados na culpabilidade, no juízo de reprovação social, e não no fato típico (como é no CP comum, com a adoção da teoria finalista).

Com esse excesso de ontologia, surgiram – após o pensamento de Kant, com o apreço ao imperativo da razão e ao conhecimento in abstracto – os neokantistas, trazendo uma análise mais valorativa, axiológica, à teoria do crime. A conduta continua sendo causal, mas houve mudanças em outras áreas como na tipicidade, na ilicitude (entendendo-as como materiais, sistema axiológico) e na culpabilidade (acrescentando ao dolo e culpa a imputabilidade e a exigibilidade de conduta diversa, elementos normativos e valorativos). O sistema neokantista foi a matriz do CPM.

Após o sistema neokantista, o pensamento de Welzel veio para corrigir algumas falhas, como o excesso de axiologia do sistema neokantista que deixava na discricionariedade do juiz margem valorativa muito grande para a análise de tipicidade e ilicitude. A premissa central de Welzel foi de que “toda conduta humana é o exercício de uma atividade final ou dirigida a um fim”. Ou seja, a conduta é dotada de finalidade/motivação. Sendo assim, o dolo deixou de ser normativo (passando a ser dolo natural) e foi deslocado, junto com a culpa, para a conduta, no fato típico. A tipicidade continua a ser material, mas num sistema ontológico-dogmático, não tão valorativa quanto no neokantismo. A culpabilidade passa a ser puramente normativa (imputabilidade, potencial conhecimento da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa). O sistema finalista foi a matriz da reforma geral de 1984 do CP comum.

Como este artigo se destina a analisar o instituto do erro, a partir das matrizes dos códigos, não se introduzirá sobre sistemas mais modernos como a teoria social da ação, funcionalistas (teleológico e sistêmico) e teoria significativa da ação, pois ainda não serviram de matriz à nossa codificação (apesar da jurisprudência, de alguns tribunais, usufruir de conceitos e de estruturas dessas teorias em muitos julgados). 

O erro é um instituto que busca solucionar condutas em que o agente ou acredita estar amparado pela lei (discriminantes/permissões) ou acredita, por uma ilusão da realidade, que não está realizando uma conduta típica. 

Passemos a analisar esse instituto sob a análise da matriz dos códigos.

O erro do CP comum

 O CP comum disciplina o erro nos Arts. 20 (erro de tipo) e 21 (erro de proibição), pois tem como matriz o finalismo. Como se observou, o finalismo entende que a conduta, por ser dotada de finalidade, é composta por dolo e culpa. Assim, um erro de conduta (que afetaria o fato típico) somente se pode dar se a percepção do sujeito sobre a realidade for errônea, ou seja, o erro de tipo é o clichê exemplo do caçador que mata o seu amigo, mas achando ser ele um urso. O dolo dele era de matar o urso, portanto, há um erro na sua conduta, em uma elementar do tipo do homicídio (matar alguém). Um erro de tipo. Já o erro de proibição incide no juízo de reprovabilidade de algo, pois a conduta e o dolo do agente é ilícita. É o clichê exemplo do holandês que viaja ao Brasil e, sem saber que a conduta é proibida, faz uso de maconha. O dolo dele era de usar maconha, só que no seu país o uso da droga é permitido. Então a correção se dá pelo juízo de reprovação (erro de proibição). 

A crítica que há no sistema do CP comum está no Art. 20, §1º. Como se viu, quando o dolo do agente coincide com a elementar do tipo, a solução não é o erro de tipo (excluindo o dolo da conduta), mas no erro de proibição (juízo de reprovabilidade). Acontece que, além do exemplo trazido no parágrafo anterior, há os erros de permissão, que são erros quando o agente acha que existe uma discriminante ou, então, excede os limites dessa, achando que assim poderia (o agente que lesiona o amante de sua esposa, por achar que está em legítima defesa da honra). Nesse caso, a solução continua pelo juízo de reprovabilidade, pois o dolo do agente continua típico, no exemplo dos parênteses, anterior, ele queria lesionar (ao encontro de Welzel). 

O problema se dá, no erro quanto a pressupostos fáticos de uma discriminante, por exemplo, o agente que mata seu inimigo, que estava a sacar uma bandeira de trégua, mas que o agente acreditava ser uma arma. Nesse caso, o dolo do agente era de matar, que deveria ser resolvido pelo juízo de reprovabilidade. Mas o código penal comum no Art. 20, §1º, busca solucionar a questão como erro de tipo permissivo, excluindo o dolo da conduta.

Há portanto, uma limitação do erro de permissão (pois pelo finalismo, deveria ser resolvido pelo juízo de reprovabilidade), ou seja, o erro sob discriminante putativa, consoante o Art. 20, §1º, consubstancia um erro de tipo permissivo, e não um erro de permissão. Assim, a doutrina entende que foi adotada a teoria limitada da culpabilidade (de encontro a Welzel). Seria uma exceção ao finalismo, no sentido de que é um desprestígio ao dolo do agente como composição da conduta (fato típico), no exemplo acima, o dolo do agente era de matar seu inimigo (conduta típica). Welzel defendia a teoria extremada da culpabilidade, pois quando o dolo do agente fosse típico, a solução deveria ser pelo juízo de reprovabilidade.

O erro no CPM 

O Código Penal Militar, vigente desde 1970, adotou uma matriz neokantista. Tanto para os neokantistas, quanto para os causalistas, a conduta era resultado de um fenômeno causal (causa e efeito). Para isso, as teorias que lecionavam sobre o erro eram a do Erro de Fato e Erro de Direito. 

Erro de fato é aquele que se atingem as características do fato criminoso ou que recai sobre alguma circunstância fática que excluiria a ilicitude (o erro de fato compreende a discriminante putativa e a ação que, por erro na percepção, acredita não estar praticando um fato tipificado como crime). Por sua vez, o erro de direito incide sobre a obrigação de respeitar a norma, isto é, ocorre quando o agente, por ignorância da ilicitude de sua conduta, pratica um fato proibido pela lei penal .

No causalismo clássico, defendia-se a irrelevância do erro de direito, pois não se separava a ignorância da lei (em sentido formal) da consciência da ilicitude. Assim, o Art. 25 do CPM de 1944 é justificado pelo embasamento teórico da matriz causalista clássica e da ideia de Franz Von Liszt acerca do Erro . Portanto, o dolo era normativo, mas não havia o elemento da consciência da ilicitude, pois acreditava-se que não se era escusável o desconhecimento da lei (confundia-se, então, a ignorância da lei, do conceito de consciência da ilicitude).

Com o causalismo neoclássico (neokantismo), também com a ideia de um dolo normativo (dolus malus ou dolo jurídico), houve a evolução dos seus elementos, fundada na filosofia axiológica da teoria do crime, ou seja, fundada no neokantismo. O dolo era composto por três elementos: vontade; representação do resultado; consciência da ilicitude. A partir desse momento, deu-se um passo relevante para o afastamento da responsabilidade penal no erro sobre a consciência da ilicitude (erro de direito), até então irrelevante.

Por conseguinte, no causalismo neoclássico (neokantista), com o desenvolvimento de uma concepção normativa da culpabilidade (normativo-psicológica) e a adoção do dolo normativo, foram criadas as teorias do dolo que inserem a consciência da ilicitude no dolo, como um de seus elementos. Com o dolo normativo (antigo dolus malus dos romanos), surgiram as seguintes teorias ligadas ao estudo do erro: Teoria Extremada do Dolo; Teoria Limitada do Dolo; e Teoria Modificada do Dolo. Essas teorias partem da premissa de que a consciência da ilicitude é elemento do dolo normativo.

Teorias do dolo

A primeira, denominada teoria extremada do dolo, baseia-se na teoria de Biding  e sustenta que o erro é aplicável sem nenhuma limitação, ou seja, se o erro é inevitável, tanto erro de fato, quanto erro de direito, não há dolo e não há responsabilidade penal. Já se o erro era evitável, o agente deve sempre responder por crime culposo (se houver). A teoria extremada sofreu várias críticas, por equiparar realidades muito diversas (não conhecer elementos que constituem o delito e não conhecer a ilicitude) ou mesmo por importar em vácuo de punibilidade, diante da dificuldade de demonstração da atual consciência da ilicitude do agente. 

A segunda, denominada teoria limitada do dolo, baseia-se na doutrina de Mezger , surge para suprir as dificuldades na aplicação da teoria extremada (que exigia sempre a consciência atual da ilicitude no momento da realização da conduta e, assim, ensejava injustiças). A teoria de Mezger admitia a equiparação ao dolo, quando o autor atuava sem a consciência da ilicitude, mas com “cegueira do Direito” (ou cegueira jurídica ou inimizade ao Direito). Assim, o erro do autor é irrelevante quando age com cegueira jurídica, sendo punível a título de dolo. É uma teoria muito criticada, pois fere o princípio da culpabilidade e dá margem a um direito penal do autor, julgando-o pelo que ele é, e não pelo que ele fez. Para Mezger, há casos em que o autor do crime (normalmente, um delinquente habitual) demonstra desprezo ou indiferença tais para com os valores do ordenamento jurídico que, mesmo não se podendo provar o conhecimento da antijuridicidade, deve ser castigado por crime doloso.

Para tentar reagir às críticas à teoria limitada, surge a teoria modificada do dolo, inserindo no direito a moderna nomenclatura do “erro de proibição e erro de tipo”. Parte-se do pressuposto de que a consciência da ilicitude faz parte do dolo; assim, o erro de proibição inevitável exclui a consciência da ilicitude e, em consequência, o dolo; este, ainda faz parte da culpabilidade, portanto o erro de proibição inevitável exclui a culpabilidade. Se evitável o erro de proibição, o agente será punido com a pena do crime doloso, podendo ser atenuada. Assim, não se pune mais o agente por uma característica dele (cegueira jurídica), mas sim analisando a sua ação (se erro evitável ou inevitável), admitindo a punição sem atenuação conforme a análise da conduta. 

Qual teoria o CPM 1969 adotou?

Resta agora saber qual teoria do dolo o CPM de 1969 adotou. Consoante já se dissertou, o código adotou a matriz neokantista e os conceitos de erro de fato e erro de direito. Assim dispõe o códex:

Êrro de direito

Art. 35. A pena pode ser atenuada ou substituída por outra menos grave quando o agente, salvo em se tratando de crime que atente contra o dever militar, supõe lícito o fato, por ignorância ou êrro de interpretação da lei, se escusáveis.

Êrro de fato

Art. 36. É isento de pena quem, ao praticar o crime, supõe, por êrro plenamente escusável, a inexistência de circunstância de fato que o constitui ou a existência de situação de fato que tornaria a ação legítima

1º Se o êrro deriva de culpa, a êste título responde o agente, se o fato é punível como crime culposo”


Quanto ao erro de fato (Art. 36), se escusável isenta de pena, se inescusável (culposo), pune-se o agente por crime culposo (se previsto). Ou seja, poder-se-ia dizer que o erro de fato do CPM foi ao encontro da teoria extremada do dolo.

Contudo, ao observar o erro de direito, vê-se que se inevitável pune-se a título de crime doloso sem atenuação e, se evitável (salvo em se tratando de crime contra o dever militar), apenas há a possibilidade de atenuação ou substituição. Ou seja, um tratamento muito mais severo que as teorias do dolo lecionam. O erro inevitável é punível normalmente, e o erro evitável tem apenas uma possibilidade de atenuação ou substituição. 

Estando ao arrepio das teorias do dolo, parte da doutrina a exemplo de Assis  afirma que “se considerarmos a aceitação pacífica da existência de um direito penal da culpabilidade – nulla poena sine culpa – a severidade da legislação castrense não encontra, atualmente, justificativa plausível para sua mantença”, aliado a esse argumento ainda se pode afirmar que não é possível a aplicação da analogia in bonan partem (pois não há lacuna legal), mas pode-se mitigar o draconiano por política criminal, razoabilidade, dignidade da pessoa humana e isonomia (assim como o STM  faz no crime continuado, em que aplica o Art. 71 do CP comum em vez do 80 do CPM).

Contudo, em que pese os argumentos de parte da doutrina, Romeiro  justifica a ressalva do Art. 35 com o supremo interesse da disciplina militar, baluarte da defesa e da integridade da pátria e Rosa  afirma que todo aquele que escolhe servir nas instituições militares, federais ou estaduais, assume um compromisso que nem sempre é observado nas instituições civis, o cumprimento fiel das ordens legais emanadas das autoridades constituídas, e ainda o respeito à hierarquia e à disciplina.

A jurisprudência do STM é pacífica ao aplicar o Art. 35 do CPM como erro de direito, consoante se vê:

“os arts. 35 e 36 do Código Penal Militar somente são aplicáveis quando o agente comete o crime por erro plenamente escusável, sendo que, no primeiro caso, quando ausente a consciência da ilicitude, o Códex Castrense considera a ocorrência de mera causa de atenuação da pena. No segundo, pode afastar o dolo na conduta. Comprovadas a autoria, a materialidade e a culpabilidade, não merece reparo a Sentença prolatada em desfavor do Acusado. Recurso não provido. Unanimidade STM – APL: 70007035220197000000, Relator: CARLOS VUYK DE AQUINO, Data de Julgamento: 26/09/2019, Data de Publicação: 09/10/2019”

Bem como aquele egrégio tribunal repudia a aplicação do Erro de Proibição, pois não há lacuna no código castrense (STM – Apelfo: 50516 PE 2007.01.050516-4, Relator: MARCOS AUGUSTO LEAL DE AZEVEDO, Data de Julgamento: 29/04/2008).

Em que pese a jurisprudência e a doutrina serem contra, este autor vai ao encontro de Jorge César de Assis, acrescentando o argumento sobre a origem do Art. 35 que será discorrida.

O Erro de Direito do CPM não adotou nenhuma teoria do dolo como fundamentação. Mas de onde ele se originou? O código penal militar de 1944 não adotava tal instituto, pois os causalistas clássicos não entendiam a diferença de consciência da ilicitude e ignorância da lei formal, assim dispunha aquele código: “Art. 25. A ignorância ou a errada compreensão da lei não eximem de pena.”.

Analisando a exposição de motivos do CPM, vê-se que ela foi silente sobre a inovação do erro de direito. Contudo, sabe-se que foram publicados em 1969 o CPM e o CP comum de 1969 (este último sendo revogado antes de entrar em vigor). Analisando este último códex, em seu número 12 da exposição de motivos, encontra-se a resposta da origem teórica do Art. 35, senão veja:

“12. Da mesma inspiração é a nova regra relativa ao êrro de direito. A Comissão Revisora pronunciou-se no sentido da completa equiparação do êrro de direito ao êrro de fato, solução afastada no exame final do projeto, em nome da prudência. O entendimento geral da doutrina e da jurisprudência em relação ao êrro de direito extrapenal, equiparado ao êrro de fato, elimina o principal inconveniente da ampla disposição do Código vigente quanto à lrrelevância do error iuris. Nos Casos em que a ignorância ou êrro de interpretação da lei conduzem à suposição da licitude do fato, pode o juiz atenuar a pena, nos limites fixados no art. 59, ou, ainda, substituí-la por outra menos grave. A pena de reclusão pode ser substituída pela de detencão, e esta, pela de multa. É solução plenamente satisfatória.

Como é óbvio, deve o êrro ser escusável, ou seja, não derivar de culpa. Inescusável é o erro que permite censura ao agente. Manteve-se a distinção tradicional entre êrro de direito e êrro de fato, não obstante o reconhecimento da maior perfeição técnica da divisão entre êrro de tipo e erro de proibição. 

A distinção clássica que sempre se adotou entre nós não deve ser eliminada em favor de regulação extremamente complexa e estranha à nossa doutrina. Nesse sentido pronunciou-se a Comissão Redatora do Código Penal.”

Ou seja, o congresso entendeu pela “prudência” e para não dispor de “regulação extremamente complexa e estranha à nossa doutrina” a adoção do Erro de Direito consoante o Art. 35, ao arrepio de qualquer fundamento teórico. Assim, além de todos os argumentos, pela aplicação do CP comum ao instituto do Erro de Direito, há também o argumento de que não há embasamento teórico para a adoção do Art. 35, consoante as teorias do dolo.

Conclusão

Ante a todo o exposto e dissertação, conclui-se que as teorias do dolo não legitimam o Art. 35 do CPM, bem como há possível afronta aos princípios da razoabilidade, dignidade da pessoa humana e isonomia, podendo o STM e outros juízos aplicarem o Art. 21 do CP comum na Justiça Militar, consoante o faz  no crime continuado, em que aplica o Art. 71 do CP comum em vez do 80 do CPM.

Matheus Santos Melo

Advogado em SC. Especialista em Direito Militar.  Contato: matheus_melo93@hotmail.com 

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