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OS PRINCIPAIS CRIMES DE ABUSO DE AUTORIDADE DA LEI Nº 13.869/19– SEGUNDA PARTE

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SUMÁRIO

OS PRINCIPAIS CRIMES DE ABUSO DE AUTORIDADE – SEGUNDA PARTE

1.TEORIA GERAL DO ABUSO DE DIREITO

2.TIPOS PENAIS DA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE

3.ABORDAGEM CRÍTICA E ANÁLISE DOS ELEMENTOS SUBJETIVOS DO ARTIGO 1º DA LEI Nº 13.869/19

4.AGENTE ATIVO DO CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE

5.PRINCIPAIS CRIMES DA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE

5.1 Artigo 322, CP (crime de violência arbitrária)

5.2 Artigo 9 da Lei nº 13.869/19 (decretação da privação de liberdade de alguém de maneira indevida)

5.3 Art. 13 da Lei nº 13.869/19 (constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência)

5.4 Artigos 27 e 30 da Lei nº 13.869/19 (crimes de abuso de autoridade praticados por membros do Ministério Público)

5.5 Artigo 33 da Lei nº 13.869/19 (crime de Carteirada)

6.REFERÊNCIAS

OS PRINCIPAIS CRIMES DE ABUSO DE AUTORIDADE  (LEI 13.869/19)– SEGUNDA PARTE

No dia 27 de julho de 2022, o Promotor de Justiça do Estado do Mato Grosso, Mestre em Direito, Membro Auxiliar do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), Renee do Ó de Souza, percorreu por vários aspectos essenciais da Nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/19), e diante de uma visão crítica e fundamentada, deu enfoque aos principais crimes previstos nesse diploma normativo e suas redações controversas.

Para acessar a primeira parte desta matéria, acesse o link: https://www.etnainstitutoeducacional.com.br/os-principais-crimes-abuso-autoridade/

 

1.TEORIA GERAL DO ABUSO DE DIREITO

O abuso de autoridade está inserido dentro da teoria geral do abuso de direito, que consiste na caracterização de um ilícito a partir da prática exagerada de atos inicialmente amparados legalmente pelo ordenamento jurídico. Em síntese, o sujeito que excede o exercício do seu direito acaba por cometer atropelamentos às garantias dos outros cidadãos, incorrendo em prática ilegal.

Por esse viés e no que se refere ao Direito Administrativo e Penal, o abuso de autoridade é compreendido como o extrapolamento e desvio do exercício das funções públicas, praticados e exercidos por um agente público. Consequentemente, ao invés dessa atuação servir para coordenar o convívio social, produz temor indevido à população atingida por esses comandos.

Em resumo, o abuso ocorre quando o agente público, investido de sua função pública, ultrapassa os limites da sua atuação regular.

 

2. TIPOS PENAIS DA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE

A Nova Lei de Abuso de Autoridade foi editada com o objetivo declarado de reformar a nossa legislação penal. Contudo,  não regulamentou precisa e estritamente o comportamento do agente público que no exercício de sua função, agride qualquer cidadão fisicamente ou psicologicamente, seja por meio de um grito desnecessário ou até mesmo ao desferir pontapés, a título exemplificativo.

Segundo o palestrante, a nova legislação cria uma série de tipos penais, mas, ilogicamente, esquece dessas condutas cotidianas conhecidas tradicionalmente como abuso de autoridade.

É importante ressaltar que a concepção da Lei se deu em um contexto conturbado, no qual as atuações de alguns agentes públicos do Brasil entravam em confronto com pessoas ocupantes de determinadas frentes e posições de poder, sendo que de maneira velada, a lei foi aprovada para retaliar supostos abusos por esses funcionários a serviço do Estado. Nota-se que o objetivo verdadeiro de sua feitura fica mais evidente quando a agressão do agente público ao cidadão comum não se encontra regulamentada.

 

3.ABORDAGEM CRÍTICA E ANÁLISE DOS ELEMENTOS SUBJETIVOS DO ARTIGO 1º DA LEI Nº 13.869/19

Em tese, essa lei busca capitular o comportamento de agentes públicos que praticam desmandos funcionais, merecendo a incidência do Direito Penal e o peso de sua pena subsequente.  Todavia, o que ocorre é a retaliação sob o comportamento regular dos agentes públicos que atuam contra o interesse de pessoas ocupantes de posições importantes em nosso país, sendo essa, a abordagem crítica do Promotor de Justiça.

Com isso, a busca pelo equilíbrio na aplicação do direito e dever de punir do Estado em face do funcionário público, tendo como base o excesso ou desvio funcional, é tarefa árdua para o legislativo. Uma vez que o diploma normativo precisa ao mesmo tempo, desincentivar a prática de atos ilícitos por meio da aplicação de sanções, sem que isso provoque uma desmoralização do agente que atua corretamente, considerando que sua função muitas vezes demanda de uma postura destemida e incisiva, indevidamente confundida com a prática de excessos em suas atribuições.

Dessa forma, foram criadas duas garantias legais na tentativa de proteger esse agente público regular. Essas “travas” estão contidas nos dois primeiros parágrafos do artigo 1º, da Lei nº 13.869/19.

Diante do exposto, é uma etapa obrigatória realizar um estudo crítico da lei sob o ponto de vista jurídico para evitar a confusão entre uma atuação abusiva e uma atuação regular dos agentes estatais, entretanto, nem sempre esses dispositivos alcançam a proteção pretendida.

Com isso, os elementos de exclusão de culpabilidade ou atipicidade dos crimes de abuso de autoridade, contidos no parágrafo 1º do dispositivo supracitado, são absolutamente subjetivos, sendo esse um aspecto bastante negativo no que se refere a análise de sua ocorrência, permitindo uma manipulação argumentativa muito grande. São eles:  a “finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”. Conforme segue abaixo:

Art. 1º  Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.

1º  As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.

2º  A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade.

 

Essas finalidades específicas eram exigidas anteriormente pela jurisprudência brasileira à luz da antiga lei e não representam uma inovação no sentido de amparar o agente público regular, apenas consagraram a necessidade de indicar que a responsabilização é condicionada ao extrapolamento dos limites legais ou desvios da atuação pública.

Outrossim, a alta subjetividade gera um problema prático a ser considerado: sua difícil comprovação. Tendo em vista que a materialização do “mero capricho” ou “satisfação pessoal” é quase sempre impossível de ser identificado, e a constatação de que alguém praticou determinado ato com o objetivo de prejudicar alguém é bastante complexa e incerta. Em outras palavras, são elementos manipuláveis.

Na sequência, o parágrafo 2º dispõe que “A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade”. Em conformidade ao exposto pelo Renee, essa disposição legal é um empecilho no enfrentamento às interpretações teratológicas, nas quais, a partir de uma circunstância e observação da lei, o sujeito chega a conclusões completamente absurdas e não toleradas juridicamente como sendo corretas, adequadas, justificáveis ou imunizantes de sua conduta.

Por esse entendimento, o agente público que se utiliza de uma interpretação teratológica está acobertado pelos limites legais da lei de abuso de autoridade, situação essa que gera diversas incoerências e condutas proibidas, as quais, segundo o palestrante, deveriam ser imputadas ao infrator como ilícitos penais.

Resumidamente, em relação ao dispositivo 1º da Lei 13.869/19, a garantia contida no parágrafo 1º pode ocasionar manipulações argumentativas que tornam a lei ineficiente, já a disposição do parágrafo 2º permite a produção de resultados que isentam a responsabilidade do agente público irregular, equivocadamente. Assim sendo, na realidade essas garantias legais não atingem o seu objetivo inicial, e de forma contrária, tem sua utilização voltada para incrementar as representações de abuso de autoridade praticado por agentes públicos, ao invés de protegê-los, atuando como “verdadeiras armadilhas”.

Ainda sobre os elementos subjetivos, tem-se que os crimes de abuso de autoridade existem somente na modalidade dolosa, excluindo-se a culposa. Ademais, a doutrina brasileira impõe que o dolo deve ser restritamente o direto. Sendo essa uma tentativa de evitar que práticas despropositadas gerem uma sanção penal.

 

4. AGENTE ATIVO DO CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE

Nos termos do artigo 2 da respectiva lei, o sujeito ativo do crime de abuso de autoridade pode ser todo agente público que seja servidor ou não, da administração pública direta, indireta ou fundacional. Em regra, qualquer pessoa que possua um vínculo funcional com a administração pública.

Contudo, os crimes próprios exigem sujeitos específicos, em razão disso, somente podem responder pelos crimes que exigem o poder de mando, ou seja, autoridade para ordenar e restringir direitos e liberdades de terceiros, os agentes públicos que detém essa capacidade sob o ponto de vista do Direito Administrativo.

Ademais, ressalta-se que o agente deve estar exercendo a sua função pública no momento do ilícito para que tal conduta seja considerada abuso de autoridade. Por essa acepção, excluem-se os atos praticados na vida privada, durante o período de férias ou folgas, por exemplo, pois nessas situações, o sujeito não está agindo propter officium (inexiste vínculo entre a conduta e sua função pública), portanto, não responde pelo crime de abuso de autoridade.

Nesse cenário, existe um obstáculo para transplantar a aplicação do entendimento aos militares, tendo em vista que na maioria das vezes a regência normativa desse grupo de profissionais indica que esta condição de militar é indissociável. Em suma, muito dificilmente o agente desse grupo restrito, ainda que durante suas férias ou folgas, e mesmo fora de suas funções rotineiras e atividades funcionais, poderia se despir dessa característica e não responder pelo abuso de autoridade ao cometer o fato típico.

Por fim, é importante mencionar que o particular não pratica crime de abuso de autoridade uma vez que não detém autoridade pública. Contudo, há exceção nos casos em que estiver em concurso de pessoas, quando um cidadão comum auxilia um funcionário público a praticar o ato ilícito.

 

5.PRINCIPAIS CRIMES NA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE

5.1 Artigo 322 do CP (crime de violência arbitrária)

Anteriormente, a lei nº 4898/65 tratava de questões relacionadas aos abusos praticados por autoridades, inclusive, do crime de abuso, por excelência. Sendo assim, o funcionário público que agredia o cidadão, respondia pelo crime previsto nessa lei especial, atualmente revogada. Com isso, tendo em vista que esse comportamento não ganhou redação com o advento da nova lei de abuso, a presente conduta voltou a ser delimitada pelo então “esquecido” artigo 322, do Código Penal.

Em síntese, se um agente público agride um cidadão no exercício de sua função pública, contraditoriamente, não pratica crime de abuso de autoridade, pratica o crime de violência arbitrária. Isso porque o legislador brasileiro editou um novo diploma para tratar das atualizações e modernização dessa temática, mas se omitiu no que diz respeito à tipificação da conduta clássica considerada como abuso de autoridade.

5.2 Artigo 9 da Lei nº 13.869/19 (decretação da privação de liberdade de alguém de maneira indevida).

Conforme já mencionado, uma crítica geral à presente lei decorre de seu texto, demasiadamente aberto e amplo, contendo muitos elementos normativos subjetivos e imprecisos, ocasionando incertezas capazes de inibir a atuação do agente público em uma atuação regular voltada para conter comportamentos ilícitos.

Dessa forma, o artigo 9 criminaliza a decretação indevida da privação de liberdade de alguém, é o que se verifica a seguir:

Art. 9º Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais:    

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único.  Incorre na mesma pena a autoridade judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de:

I – relaxar a prisão manifestamente ilegal;

II – substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível;

III – deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente cabível.

Apesar disso, é importante destacar que, segundo o artigo 302 do Código de Processo Penal (CPP), qualquer pessoa do povo tem a permissão para efetuar a prisão em flagrante delito. No entanto, apenas os agentes públicos que detenham em suas funções a capacidade de privar alguém de sua liberdade podem ser atingidos pelo artigo 9 da Lei nº 13.869/19, sendo esse um crime próprio.

Isto posto, para melhor ilustração do assunto é necessário conhecer quais são as hipóteses de prisão admitidas no Brasil:

  • Flagrante delito: (art. 302, CPP)
  • Ordem judicial: (Lei 7.960/89 + arts. 283 e 312, CPP).
  • Civil por alimentos (art. 5, inciso LXVII e súmula vinculante 25 do STF).
  • Internação do adolescente infrator: art. 108 e 121 do ECA

 

Logo, as prisões ilegais mais comumente conhecidas, seja porque ferem qualquer uma dessas 4 modalidades de privação de liberdade acima abordados, seja pela configuração de algum desvio em sua efetivação:

  • Prisão para averiguação: Equivocadamente realizada, ocorre quando o agente público se fundamenta apenas na desconfiança para realizar a prisão de uma pessoa privada. Essa modalidade é ilegal, visto que, ocorre fora das hipóteses permitidas.
  • Prisão em flagrante forjado: É o flagrante fabricado, no qual a autoridade pública cria uma situação criminosa para efetuar o flagrante, como “plantar” uma substância ilícita ou algum instrumento ilegal junto a determinada pessoa, e a partir disso, promover a acusação imputando o fato típico correspondente.
  • Prisão temporária: Consiste em uma das modalidades de prisão por mandado judicial existentes no Brasil, sendo permitida restritamente às condicionantes do artigo 1°, incisos I e II da Lei de Prisão Temporária (Lei nº 7.960/1989), e ao rol taxativo de crimes disposto no inciso III do mesmo artigo.
  • Prisão civil por dívida comum.
 
 

Apesar do artigo 9 determinar que somente em casos de prisão efetuada sem qualquer cobertura legal haverá responsabilidade por abuso de autoridade, esse contexto pode gerar um efeito adverso nos casos em que o cidadão comum, conquista, em momento posterior, a liberdade provisória ou tem sua prisão revogada. Pois, ainda que a atuação da autoridade pública tenha sido regular e a liberdade se deu em razão dos diversos mecanismos previstos no CPP somados ao ordenamento jurídico, é tendencioso que o sujeito capturado conclua pela abusividade e desnecessidade da prisão aplicada.

Logo, essa previsão atrelada ao sentimento de injustiça dessa população origina e alimenta um sentimento de revanchismo indevido em face dos agentes públicos que atuam dentro dos limites legais. Reiteradamente, nota-se que os elementos demasiadamente subjetivos nos tipos penais incriminadores ocasionam várias situações indesejadas, distanciando a lei do seu real objetivo.

 

5.3 Art. 13 da Lei nº 13.869/19 (Constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência).

O Artigo 13 da Lei nº 13.869/19, dispõe que:

Art. 13.  Constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a:

I – exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública;

II – submeter-se a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei;

III – (VETADO).  

III – produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro:

Conforme se denota pela leitura da lei, o preso ou detento não pode ter exibido o seu corpo ou parte dele à curiosidade pública, sendo que a feitura desse dispositivo visa o impedimento da execração pública, seja por meio de filmagens ou através de fotos capturadas por noticiários e particulares.

A respeito disso, a prática recorrente dos policiais exibirem intencionalmente o acusado à mídia foi denominada no Estados Unidos como Perp Walk. Sendo o caso envolvendo o presidente John Kennedy, dos Estados Unidos, emblemático para a configuração dessa denominação, visto que o acusado pelo seu homicídio acabou sendo assassinado depois de ter sido exposto pelos agentes da polícia norte americana.

Essa situação foi levada diversas vezes à Suprema Corte dos EUA, que acabou por parametrizar o comportamento, definindo, primeiramente, a legalidade de exibição do acusado à população, após ter sido preso, tendo em vista que essa atitude gera respeitabilidade e cumpre com alguns predicados importantes à justiça, como o direito à informação.

Contudo, é importante mencionar que a exposição não pode ser artificial ou decorrer de uma encenação, limitando-se ao momento da captura e deslocamento, sendo vedada a apresentação do preso como se fosse um “troféu”, uma vez que essa prática fere o princípio da dignidade humana. Ademais, a Suprema Corte estabeleceu que não podem ser exibidas, de forma alguma, imagens da residência do sujeito no momento de sua prisão.

Com isso, o palestrante destaca a necessidade de transjudicialização das práticas adotadas pela Suprema Corte dos EUA, sendo essa uma expressão cunhada pelo constitucionalista brasileiro Marcelo Neves. Em resumo, o termo significa a transferência de decisões e de compreensões já emitidas por Supremas Cortes de outros países para produzir efeito além das fronteiras onde estão situadas. Dessa forma, promovendo uma uniformização na proteção de determinados direitos e interesses.

Nessa continuidade, Renee do Ó de Souza ressalta a necessidade da transjudicialização para dar uma interpretação correta ao inciso I, do artigo 13, sob pena de incitar um problema prático quase impossível de ser contornado, uma vez que existem inúmeros meios de comunicação capazes de exibir os presos à curiosidade pública sem que se possa imputar a prática do crime.

Na sequência, o inciso II do mesmo dispositivo aborda o uso abuso de algemas, tema anteriormente regulamentado pela súmula vinculante de nº 11, editada pelo STF, sob a qual o detento não pode ser algemado com o objetivo único de submeter alguém a uma situação vexatória. Em regra, a sua utilização está limitada aos casos em que houver receio justificado de que o cidadão poderá colocar em risco a realização ou efetivação de sua prisão, além de que, possa colocar em risco a integridade física daqueles que estão privando sua liberdade ou a própria.

 

5.4 Artigos 27 e 30 da Lei nº 13.869/19 (crimes de abuso de autoridade praticados por membros do Ministério Público)

Outra crítica usual a nova Lei de Abuso de Autoridade é que nela estão abarcados crimes previstos para todos os agentes públicos do sistema de justiça. Isso porque, o artigo 9 tem o seu sujeito ativo representado pelo juiz de direito, seguidamente, existem ilícitos penais voltados aos representantes da polícia civil, e por fim, os tipos penais dos artigos 27 e 30 são direcionados essencialmente para os membros do Ministério Público, conforme será demonstrado a seguir.

Nos termos do artigo 27, é conduta típica:

Art. 27. Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa.

Contudo, segundo o palestrante, nota-se uma incoerência em relação à redação do texto, uma vez que a investigação visa colher, justamente, os indícios da prática criminosa por alguém. Isto posto, essa determinação inviabiliza, indiretamente, a própria instauração da investigação.

Por outro lado, o parágrafo único do mesmo dispositivo determina que “não há crime quando se tratar de sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada”. Por essa acepção, o promotor de justiça que não possuir indícios de autoria em face de alguém fica impedido de instaurar uma investigação propriamente dita, mas poderá promover uma investigação preliminar visando colher esses indícios e, em um segundo momento, instaurar o procedimento investigatório previsto no caput. Em suma, cria-se uma espécie de atuação em duas fases distintas.

Nessa continuidade, o artigo 30 complementa o dispositivo acima mencionado ao determinar que “Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente” é conduta típica.

Ou seja, o artigo 27 recai sob a instauração de uma investigação sem indícios e o dispositivo 30 proíbe o procedimento investigatório quando inexistir justa causa que o fundamente.

Em contrapartida, o palestrante Renee acredita que essas duas disposições violam algumas garantias consolidadas na chamada Convenção Interamericana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, uma vez que esse diploma legal prevê a necessidade de investigar e apurar a prática de determinados ilícitos.

À vista disso, é equivocado inferir que os direitos humanos tutelam e protegem unilateralmente os interesses dos infratores, pois o Brasil foi condenado diversas vezes pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos justamente em razão da omissão na investigação de determinadas práticas criminosas, como ocorreu no “caso sétimo Garibaldi versus Brasil”. Em síntese, a condenação se fundamentou na inobservância das determinações convencionadas ao não providenciar a estrutura basilar para que o Ministério Público e demais instituições pudessem realizar as averiguações necessárias. E o entendimento da Corte foi proferido no sentido de que tanto a sabotagem, quanto uma ação ínfima voltada a essas instituições investigatórias representam violação aos direitos humanos.

Com isso, verifica-se a necessidade de o Estado dotar as instituições voltadas para a investigação de ilícitos, de proteções e mecanismos eficientes e capazes de promover o devido auxílio à apuração dos crimes. Por essa razão, quando a legislação inibe investigações, produz consequentemente, efeitos contrários à essas disposições convencionais.

5.5 Artigo 33 da Lei nº 13.869/19 (Crime de Carteirada)

A Nova Lei de Abuso de Autoridade trouxe uma tipificação há muito esperada: a criminalização da carteirada, tendo em vista que anteriormente, quando muito, o comportamento era caracterizado apenas como uma infração disciplinar praticado pelos agentes públicos.

Não obstante, verifica-se no dispositivo 33 da Lei em tela, a seguinte tipificação:

Art. 33.  Exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal:

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Parágrafo único.  Incorre na mesma pena quem se utiliza de cargo ou função pública ou invoca a condição de agente público para se eximir de obrigação legal ou para obter vantagem ou privilégio indevido.

Todavia, o crime de corrupção passiva prevê a conduta da utilização de cargo ou função pública para obter vantagem ou privilégio indevido. Sendo assim, qual é o critério que dissocia um ilícito penal do outro?

Segundo Renee, não seria viável o entendimento de que a norma posterior revoga a anterior, pois a legislação vigente passaria a combater a corrupção passiva no Brasil com a sanção prevista no dispositivo do crime de carteirada, utilizando-se de uma pena desproporcional e insuficiente: a detenção de 6 meses a 2 anos.

Todavia, o legislador não pressupõe em momento algum o motivo do recebimento dessa vantagem. De tal forma que, o recebimento da vantagem deve ser interpretado como uma benevolência indevida do cidadão particular, em razão de seu prestígio ao cargo que o funcionário ocupa, e independe de sua atuação profissional. Nota-se que a diferença entre ambos os tipos penais é sutil sob o ponto de vista prático, mas extremamente importante sob o olhar jurídico.

Por fim, o palestrante encerra a noite ao concluir que as disposições legais da Nova Lei de Abuso de Autoridade representam um grande obstáculo ao possibilitar a ocorrência de diversos embaraços, distanciando-se de sua finalidade, que é o impedimento da prática de atos abusivos.

Com primazia, Renee do Ó de Souza conseguiu abordar o tema sob um viés crítico, objetivo e bastante esclarecedor. Se você não teve a oportunidade de participar do evento ao vivo, vale a pena conferir agora, o link está disponível logo abaixo!

Link da palestra: https://www.youtube.com/watch?v=0C-QzrYa1a4

6. REFERÊNCIAS

Mestre em Direito e Políticas Públicas, Estado e Desenvolvimento no Centro Universitário de Brasília-Uniceub. Pós-graduado em Direito Constitucional pela Escola Superior do MP de Mato Grosso/Fundação Escola Superior do MP do Rio Grande do Sul. Pós-graduado e Especialista em Direito Processual Civil, em Direito Civil, Difusos e Coletivos pela Escola Superior do MP de Mato Grosso/Universidade de Cuiabá – Unic. Integra o grupo de pesquisa de Tutela Penal dos Interesses Difusos da UFMT e o Grupo de Pesquisa de Políticas Públicas do UNICEUB (Centro Universitário de Brasília). Promotor de Justiça em Mato Grosso. Membro Auxiliar do Conselho Nacional do Ministério Público. Membro da International Association of Prosecutors. Professor e autor de obras jurídicas.

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